Tuesday, May 29, 2007

Gato

Eu andava sempre, mesmo sem saber a hora de parar. Caminhava com o rosto de sono, os cabelos bagunçados, a camisa amassada e as sandálias surradas.

Chego à padaria do Seu Augusto, Aquele café, amigo, e ainda que fervendo, dou um sorvo, gosto de bebida quente que queima minha língua, já que ela não tem falado palavras bonitas, ao menos reclama do calor, acendo meu cigarro, resignado, esse não é o primeiro e o dia mal amanheceu, preciso diminuir, jogo fora ainda pela metade, daí passa o pivete que quer engraxar minha sandália, Porra moleque, não está vendo que essa merda não engraxa?, Paga um pão pra mim tio, Dá um pão pro moleque, E tu?, porque não está na escola, porque a merda da minha tia que cuida de mim é cachaceira e se eu não trabalhar meus irmãos morrem de fome, mas isso o moleque só pensou, Num gosto de estudar, Que vida tu quer pra tu?, Ah tio dá um cigarro aí, Tu fuma pra quê?, depois vai querer largar e vai se fuder, seu merda num deve comer ninguém e fica enchendo o saco, mas isso o moleque só pensou, saiu andando sem se despedir.

Sento no banco da praça e começo a ler os livros que eu nunca terminei de escrever, as histórias que nunca se fecham, respiro uma mistura de ar das árvores com fumaça, passo as páginas, meus dedos calejados, grossos e duros. A cada pausa, sou interrompido pelos grunhidos de uma lataria velha que insistem em chamar de ônibus, tusso o cigarro que acabei de acender, a ansiedade engasgou minha tragada. Levanto do banco, os mendigos querem dormir e, como não vou oferecer minha cama a eles, deixo vazio aquele pedaço de madeira podre, mas onde ainda me sinto à vontade.

O sol me faz suar, fecho meus escritos, levanto e ando rumo à praia. Sento num desses quiosques do calçadão de Ipanema e respiro. Peço uma água, sei que não vai me acalmar, tão pouco me hidratar, mas vai fazer com que os próximos minutos sejam mais breves.

Nunca gostei de trabalho, sempre me doeu largar a boemia para vender horas da minha vida vivida, mas agora confesso a mim mesmo: era um momento como o acima, e durava horas, sim eu chorava minhas dores – ainda que escondido – sorria, ficava irritado e me divertia, ao menos o dia passava, não eram como os de agora que se arrastam em segundos lentos, meus lábios mal se mexem, meu olfato não é mais o mesmo, mas meu olhar me salva, mesmo cansado, meus olhos observam, às vezes não param e eu fico tonto, eu outras fica paralisado, estático, e olho para meus pensamentos, essas horas são boas, mesmo quando tristes, são boas.

É fácil se perder no olhar nessa cidade, aqui mesmo, na praia de Ipanema, lembro, também, dos shows que fui, dos sons que ouvi, à música dou muito de meu ser, meu pensar e acreditar, quantas horas de alívio não tive ao batucar um atabaque, talvez por nunca conseguir levar um ritmo inteiro, talvez assim me entendesse mais, pois de que adianta ir atrás do que não completa?, e difícil é saber o que completa, tocar sem ir até o fim, eu nunca vou até o fim, finjo que não o vejo, talvez que não exista, vou tocando com a eternidade do presente, com o passado escrito e o futuro incerto. Nunca fui de me arriscar na voz, mas sempre cantei para dentro de mim, o que me atordoava era anestesiado por canções, por rimas, ecoava no meu peito as mais belas vozes da música brasileira. E como vivi momentos de pura admiração de algum groove ou um clima, que ilustravam o entusiasmo de nós, ouvintes, acordes que vibravam meus nervos.

Vivi muito tempo como se o futuro não acontecesse – agora nem quero saber dele, esse mestre das novidades e pai das ilusões, se bem que muitas vezes é o presente que guarda as maiores esperanças – ou vivi sabendo dele, mas sem querer ouvi-lo bater à minha porta. Isso trouxe surpresas, desde os infortúnios até às alegrias, essas coisas sempre me tomaram, sacudindo meu corpo de supetão, e eu ainda levanto um olhar ébrio, desconfiado como quem pergunta com um discreto sorriso no canto da boca: é agora?, mas já passou e vejo-me lançado aos leões e aos abutres, sinto que meus pés já não sentem o chão duro, meu pensamento paira tão distante, e tropeço, cai a vida, abro o queixo, vou ao hospital, tomo uns pontos, e volta a vida, eu juro aos amigos que não foi a embriaguez que me derrubou, argumento que funciona muito mais como piada, e eu também rio, o futuro já virou presente e eu, mais uma vez, não me resolvi, nem por isso descanso, vou remoendo meu presente que ficou passado com ferro quente, mas continuo amassado.

Hoje digo que é charme todo desconforto que sinto, exalo riso e olhar perdido, às vezes penso, sofro, mas tenho sorte, sempre um imprevisto, por mais bobo que seja, rouba-me um sorriso. E depois de tantas irritações caio num espetáculo de um desses norte-americanos mágicos do jazz, que toca um piano tão vivo, não posso me dar ao desprezo de não admirá-lo, em mim algo brilha, mas vou morrer sem saber o quê.

Essa cidade qualquer dia pára, quantos carros circulam sem rumo, nem preciso esperar o sinal ficar vermelho, atravesso entre fumaças e barulhos ensurdecedores, e o prefeito ainda quer me tirar trinta reais por não atravessar na faixa de pedestres. Eu sigo meu caminhar com um jornal embaixo do braço e um suor interminável na testa, passo por um desse ônibus abarrotados de estudantes que olham a vida com uma perplexidade qu’eu só vou recuperar quando tiver uns 90 anos, isso porque eu sei que não vou até lá, mas, se for, estarei lúcido o suficiente para entender o mundo. Quando eu perder o sentimento da observação, já estarei a caminho, o olhar me sufoca incessantemente à procura, mesmo que não queira encontrar coisa alguma.

Mergulho no mar, é bom ficar submerso, ouvir o barulho das ondas, deixar ser levado, depois ficar na areia até arder a pele, e sofro, encontro conhecidos, aqueles que de mim só conhecem o sorriso, pode?, eu que sempre estou triste, mas ninguém percebe a dor que carrego no meu sangue, quantas vezes pensei que essa mentira ia me fazer um câncer, confesso que era até um certo estímulo, mas hoje estou velho e ele nunca apareceu, até fumar mais eu fumei.

Monday, May 28, 2007

O vapor da cachoeira
não navega mais
no mar.

Clara, quente,
mergulha n'água gelada e
sai, fumaça densa.

Vê-se pela fumaça antiga
do cigarro novo
qu'eu reclamei ontem
a história pra contar amanhã
e rir das risadas antigas

E amanhece mormaço
pois as nossas fumaças
descansam

Monday, May 21, 2007

um pouco de brasil – introdução (I)

Caso me perguntassem o que é a Cultura Brasileira, eu me encheria de vírgulas e detalhes para não chegar em ponto final algum; não que essa objetividade seja necessária. Mas é complicado falar sobre um país continental, que extrapola a Linha do Equador e o Trópico de Capricórnio. E a pergunta levou-me ao chão simples e vasto dos brasileiros: Porque ‘cultura brasileira’ com letras minúsculas? Antes dessa pergunta, eu poderia, no máximo, refletir sobre Culturas Brasileiras, mas trocar o substantivo próprio pelo comum é o caminho para se construir um discurso mais sincero, para iluminar as curvas de como vive e se relaciona o povo brasileiro; e no singular mesmo, até porque um dos desafios de se estudar cultura brasileira é reconhecer aquilo que faz de todas as pessoas que vivem no Brasil serem reunidas num grupo denominado brasileiro.

um pouco de brasil – de três raças (II)


Então, que povo brasileiro é esse? Numa música, o poeta Vinícius de Moraes diz: “Venho de três raças muito tristes e eis porque viver tanto me dói, mas não tenho, não, qualquer vocação para ser herói”. Somos a mistura dos povos indígenas, português e africano. Africanos e indígenas são classificações muito amplas, os negros africanos vieram de uma região central daquele continente, e os índios, esses sim, estavam espalhados pelo Novo Continente. Já, ao afirmar a influência do povo português, ao invés de dizer europeu, fica claro que temos uma influência européia, mas uma Europa menos fechada, uma Europa que tinha o litoral como parte de seu território, uma Europa que desejava sair para o mundo disposta a explorá-lo e conhecê-lo. Essa mistura levou a uma realidade social curiosa, na qual o branco se impunha sobre as outras raças, mas dependia delas. Criou-se uma relação familiar, com o branco português como chefe da casa. Hoje, no Brasil, reforça-se a idéia de um país mestiço, principalmente no discurso dos brancos, reforça-se a idéia de um país sem preconceito. Porém, os que são negros, ou 'mais pra negros', sabem que não são tratados como mestiços (em igualdade de respeito em relação aos ‘mestiços mais pra brancos’), quando isso não interessa ao branco. Portanto, tem-se no Brasil a moral de um país divido entre os ‘mais pra brancos’ e os ‘mais pra negros’. Tanto é, que qualquer discurso negro que reforce sua raça, como faz o hip-hop, é visto como uma postura radical. Num rap do grupo Racionais Mc’s, há um trecho que seria a voz de um policial dizendo “Escuta aqui, o filho do cunhado do meu primo é mestiço, racismo não existe, comigo não tem disso, é pra sua segurança”. E, na seqüência da música, o rapper Mano Brown responde: “deixa pra lá, vou escolher em qual mentira devo acreditar”.

um pouco de brasil – mulher (III)

Esse patriarcalismo que o português impôs aos outros povos reflete até hoje na sociedade brasileira também na relação homem-mulher. Ao homem cabe o poder, a força, a razão, e tudo isso eu, Pedro, sempre desconfiei. Mas aprendi que à mulher, classificações como sexo frágil ou aquela que se pauta pela emoção são formas de se construir uma mulher dependente em relação ao homem; dependência como seria a do africano e do indígena em relação ao português. Mas a palavra final, na sociedade brasileira, dentro do ambiente familiar, é da mulher, os problemas íntimos sempre caem no colo da mulher brasileira, responsável por solucioná-los. O homem vende aos outros homens um poder sobre a mulher, e os outros homens sabem que precisam comprar esse juízo, afinal eles também querem que os outros homens o vejam assim também. Mas é saudável notar que com o crescimento das grandes cidades, pesou à mulher a responsabilidade de educar os filhos sozinha, pesou à mulher o cargo de chefe de família, mas a elas, no fundo, isso não foi um peso, sobre elas sempre pesou essas responsabilidades, mas, antes, o homem, quando saía de casa com sua família, fazia questão de ser o porta-voz da casa, por mais que no ambiente familiar não o fosse.

um pouco de brasil – suicídio (IV)

Outra bomba sobre um Brasil: o suicídio. Apesar de conhecer pessoas próximas que deram fim à sua própria vida durante à juventude, recusava-me, de forma cega, a enxergar nisso um traço que também tem se feito presente na rotina brasileira. Porque, na visão ‘gringa’ do brasileiro, nós amamos viver, apesar de todas as mazelas nos entregamos ao carnaval, ao futebol e à cachaça, e, assim, vencemos e passamos pelas amarguras. Mas, como disse Vinícius de Moraes, viver dói aos brasileiros, por isso o povo se transborda, e esse transbordamento se dá muito porque a tristeza está sempre por bater na porta dos brasileiros e o povo luta para não se entregar à miséria que a vida tenta lhe impor. Porém descobri que no sul do país a rotina do suicídio existe, e se matar não é um ato covarde. Portanto, mais do que entender sobre o suicídio – talvez a proximidade com essa violência ainda me cegue – posso reforçar a questão da honra, da masculinidade no Brasil. Por debaixo das mortes dos gaúchos grita um direito masculino de querer ser mais forte que a vida, e talvez os brasileiros sejam mais fortes que a vida muitas vezes. A vida que desmorona com as chuvas, que se petrifica na seca, e que nos gaúchos, envelhece. É claro que a resposta de cada brasileiro à dor da vida é uma, uns insistem em vencê-la pela insistência em viver, como é o exemplo dos moradores das favelas, outros, porém, insistem em vencer a vida acabando com ela antes que ela acabe com a dignidade humana, como é o caso dos gaúchos. Essa dignidade significa a juventude, significa ser forte para vencer tudo e todos, e vencer a vida quando ela começa a tomar as rédeas.

um pouco de brasil – risco (V)

Afora a revelação desse tipo de suicídio entre os gaúchos, há outras formas dos homens de lidar com a vida: o risco, por exemplo. O risco que faz de médicos, fumantes, que faz as pessoas transarem sem usar camisinha, que é também o risco aparentemente gratuito dos esportes radicais. Penso comigo: “Sou desses que, se não desandar, têm a vida ganha, então porque, não raras às vezes, me exponho aos riscos gratuitos, e o faço sem culpa, ao contrário, faço com e pelo prazer?” E vi que a resposta estava na própria pergunta: é no transbordamento que está a vida. O risco, se se realiza, é acidente e acidentes são inevitáveis, não adianta usar cinto de segurança, capacete, preservativo, porque se tiver que dar errado, a camisinha estoura – vive-se como se houvesse um transcendental inexorável. O risco é incorporado como inevitável, pouco adianta lutar contra. Mas, talvez, a graça da vida seja vencer os riscos, se expor e seguir adiante. É todo dia se matar um pouco com um trago e, ao primeiro que lhe falar sobre o risco, responder: “E seu eu for atropelado num ponto de ônibus? Vou perder o prazer desse trago à toa”. Antes disso, perguntei a um amigo, ao vê-lo com um capacete na mão, se ele queria morrer, se não sabia que a moto foi feita pra cair, afinal, “só tem duas rodas” e ele me respondeu: “Morrer, eu num quero, não, mas se tiver chegado a minha hora...” Sozinho nos meus pensamentos, me lembrei disso e ri comigo mesmo.

um pouco de brasil – o mito da “miséria do homem primitivo” (VI)

E outra vez o óbvio que passava pelas janelas dos meus olhos, que eu via, reconhecia, mas não “materializava”. Nas minhas viagens, sempre preferi lugares isolados, pouco afetados pelo homem, ilhas, praias desertas, montanhas, mas nunca tinha parado para pensar, de um jeito sóbrio, sobre a lenda da “miséria do homem primitivo”. Eu tenho alguma relação de identidade com o povo africano, e isso me dá o sentimento de que o ideal está no passado, porque se hoje estamos aqui é porque o passado ao menos funcionou, e pensava isso porque todos os dias gritam os jornais e os esgotos que nossa sociedade ‘civilizada’ caminha para uma veloz e voraz extinção. Mas até aí, ainda assim, não tinha tornado sólido a reflexão de que vivemos numa sociedade que educa de modo a formar uma idéia na qual o presente é melhor do que o passado, que no passado os homens viviam a miséria das chuvas, das secas, das fortes ondas de calor e de frio e, vende ainda, que o homem era totalmente frágil para enfrentar essas vicissitudes. Argumentos não faltam a eles, hoje vivemos mais, temos uma infinidade de aparatos tecnológicos, a medicina garante uma enorme sobrevida. Porém, o que garante essa miséria no passado do homem? Por que esse discurso é um discurso embasado em vitórias da ciência, mas essa mesma ciência, como um câncer, se consome. O avanço científico das descobertas sobre as vidas “primitivas” levam a crer que não se morria de fome, que o homem não se matava por espaço, que não havia dominação absoluta de um povo sobre outro. Enfim, a ciência caminha para descobertas que revelam que a miséria do homem está aí hoje em dia, e quem criou as mazelas que hoje tentamos vencer foi o próprio homem.

Thursday, May 17, 2007

Maraca

De impulso, impacto
num ferver alucinante
Personagens, arena
milhares pagantes

Uma conversa explícita
posições nítidas
dois lados, um desejo
e um ausente apita

Nos que não jogam, os nervos torcem
se contorcem, entram em campo, querem gritar
Gritam o tempo todo
mesmo quando silenciam

Mas o grito que se quer
tem três letras, um som
lá do outro lado, o silêncio
aqui: Gol!

Tuesday, May 15, 2007

A extenção da costa
Só pode ser alcançada pelo vento
Que sopra com as mãos na areia
e com o corpo no mar

O vento vaga
Com desdém ao infinito
Faz pouco caso do horizonte
indo e vindo

Por vezes, o vento sopra suave
Quase macio
Por outras, assume tamanha fúria
A dizer: sou imbatível

Vento amigo
Nunca descansa
Como se sempre lembrasse:
Levante!

Friday, May 11, 2007

A bôua

Que noites intermináveis
no acordar de tantos esquecimentos
lembranças e sorrisos
momentos

Noites a céu aberto
um esvaziar eterno de copos
instantes, recortes
ali, os corpos

Entre infinitos adiantes
desgovernáveis rumos
nunca tudo igual
nunca falta assunto

Tampouco falta calor
nas noites que não se dorme
vida que se sangra
nos dados da sorte

Camelôs

Os homens de paus e pedras trabalhavam a pouco
Quando um careca louco, sentado no trono
ordenou: Hoje é dia de sufoco!

Meio-dia, as tartarugas ninjas sedentárias,
Por medida do mercado têm de passar o sarrafo
Coletar pirateado dos formais desempregados
Que não têm carteira, mas têm sindicato

O centro da cidade encendeia com a força do Sol
A classe média vê dos altos dos escritórios
Gritos e sangues na massa de pobres

Surjo logo após o término
A Carioca respira enfermo
Vejo o circo desmontando
Ainda ouço berros

Sunday, March 04, 2007

Aterro do Rio de Janeiro

Tá rápido, sem linha as cores


Rá-rá, me dá isso aqui, porra
Rá-rá
Ai, porra, á, ááá, caralho, é foda, essa vida de mer...
...
Que sol, porra...

Acorda, coça a cara. O gramado brilha e ele lá, sozinho, estatelado no chão e um sol escaldante. A cara amaçada com a boca suja nos cantos. A roupa é a mesma de sempre: suja e rasgada.


Porra, que fome.
Tio, dá pá pagar um pão pá mim?
Dá um pão pra ele. Mas some daqui!